No 90.º aniversário do nascimento

João de Freitas Branco <br>– o maior educador musical dos portugueses

Manuel Augusto Araújo

João de Freitas Branco foi um dos in­te­lec­tuais que mar­caram o séc. XX em Por­tugal. Filho de Luís de Freitas Branco e so­brinho de Pedro de Freitas Branco, com­po­sitor, ma­estro e mú­sicos de ex­trema im­por­tância no pa­no­rama mu­sical por­tu­guês, es­tudou ma­te­má­tica in­te­grando, de­pois de se li­cen­ciar em Ci­ên­cias Ma­te­má­ticas, o grupo de es­tudos de ma­te­má­tica de Rui Luís Gomes. Pa­ra­le­la­mente fre­quentou e con­cluiu o curso do Con­ser­va­tório Na­ci­onal de Mú­sica, par­ti­ci­pando em vá­rios re­ci­tais. Sendo um bom ins­tru­men­tista, pro­va­vel­mente por não al­cançar um grau de ex­cep­ci­o­na­li­dade que se im­punha a si pró­prio na li­nhagem de seu pai e tio, mú­sicos de cra­veira in­ter­na­ci­onal, co­meçou uma car­reira de crí­tico e di­vul­gador da mú­sica sin­fó­nica, onde de­sen­volveu uma ac­ti­vi­dade pa­ra­dig­má­tica, ainda hoje não su­pe­rada. Po­de­remos mesmo afirmar que será di­fícil de su­perar. Tor­nava aces­sí­veis, fá­ceis de en­tender os mais altos con­ceitos es­té­tico-fi­lo­só­ficos. Isto num in­te­lec­tual que tem obra pu­bli­cada que, ao nível con­cep­tual, se po­derá equi­parar a um seu con­tem­po­râneo eu­ropeu que também de­dicou muita da sua obra à mú­sica, The­odor Adorno. Os seus pro­gramas «O Gosto pela Mú­sica», na Emis­sora Na­ci­onal, en­si­naram a com­pre­ender a mú­sica sin­fó­nica du­rante quase trinta anos. Ver­da­dei­ra­mente ines­que­cí­veis foram as suas in­ter­ven­ções in­tro­du­zindo a emissão pela RTP, cum­prindo ver­da­dei­ra­mente ser­viço pú­blico, da te­tra­logia de Wagner, «O Ouro do Reno». Mesmo os mais co­nhe­ce­dores dessa saga ope­rá­tica, des­co­briram o que jul­gavam co­nhecer. A mú­sica, a es­té­tica e a fi­lo­sofia ima­nentes da obra de Wagner foram ana­li­sadas com uma lin­guagem sim­ples que não traiu a pro­fun­di­dade da obra. Essa era uma rara qua­li­dade de João de Freitas Branco que, com a sua in­con­fun­dível voz, tor­nava claros e evi­dentes os con­ceitos mais com­plexos.

Atreva-se uma hi­pó­tese. Isso só era pos­sível pela sua for­mação ma­te­má­tica que se cru­zava com o seu pro­fundo co­nhe­ci­mento da mú­sica, da fi­lo­sofia e da es­té­tica. João Freitas Branco des­mente Platão que, de­pois de re­co­nhecer a in­co­er­cível in­fluência da po­esia sobre alma, ex­clui os po­etas da re­pú­blica, por con­si­derar o pen­sa­mento um logos e uma lei que tem por seu ponto prin­cipal a ma­te­má­tica, en­quanto pro­cesso ex­plí­cito do pen­sa­mento, uma língua de trans­pa­rência em opo­sição à obs­cu­ri­dade da po­esia. Subs­titua-se po­esia por mú­sica, lin­guagem poé­tica ainda mais her­mé­tica e per­ceba-se como João de Freitas Branco, ma­te­má­tico e mú­sico, faz con­vergir esses dois pen­sa­mentos. Para ele a mú­sica, como a po­esia, têm um pro­grama de pen­sa­mento, são uma an­te­ci­pação po­de­rosa, em função de um som que dentro do outro som, geram um pro­cesso sin­gular que tende para o in­fi­nito, para des­vendar o fu­turo.

Platão bania o poema (a mú­sica) porque su­punha que o pen­sa­mento poé­tico (mu­sical) como algo que não podia ser pen­sa­mento do pen­sa­mento útil. João de Freitas Branco en­sina-nos que de­vemos ouvir e sentir a mú­sica que contém em si a sin­gu­la­ri­dade de um pen­sa­mento pelo pen­sa­mento desse pen­sa­mento. De forma exem­plar con­segue expor a mú­sica, toda a his­tória da mú­sica como um des­tino de todos nós. Foi isso que du­rante toda a sua vida nos en­sinou, nos pro­gramas ra­di­o­fó­nicos e te­le­vi­sivos. Foi por isso que quando, de 12970 a 1974, as­sumiu o cargo de di­rector do Te­atro São Carlos um enorme salto qua­li­ta­tivo foi dado, co­lo­cando a pro­gra­mação ope­rá­tica do São Carlos na pri­meira linha dos seus con­gé­neres es­tran­geiros com um or­ça­mento muito mais li­mi­tado. Foi também por isso que foi, em 1948, um dos fun­da­dores da Ju­ven­tude Mu­sical Por­tu­guesa, que rompeu com os es­te­reó­tipos aca­de­mi­zantes im­postos pelo Es­tado Novo, tra­zendo uma lu­fada de mo­der­ni­dade à vida in­te­lec­tual e mu­sical por­tu­guesa.

Homem de es­querda que nunca pac­tuou com so­ci­a­lismos na ga­veta, amigo desse mi­litar re­vo­lu­ci­o­nário que foi Vasco Gon­çalves, João de Freitas Branco, entre 1974 e 1975 foi Di­rector-Geral dos As­suntos Cul­tu­rais e Se­cre­tário de Es­tado da Cul­tura e Edu­cação Per­ma­nente. Em 1985 re­gressou ao Te­atro Na­ci­onal de São Carlos como Ad­mi­nis­trador-Di­rector Ar­tís­tico e da Pro­dução.

A in­tensa ac­ti­vi­dade in­te­lec­tual que muito o no­ta­bi­lizou, de que são tes­te­munho inú­meros pre­fá­cios de li­vros, li­vros e ar­tigos em vá­rios meios da co­mu­ni­cação so­cial que con­ti­nuam a ser de re­fe­rência, os cursos de His­tória da Mú­sica que regeu em Por­tugal e no es­tran­geiro, co­e­xistia com uma imensa paixão pelo fu­tebol tanto como es­pec­tador como pra­ti­cante, sa­bendo-se que até ao fim da sua vida não dis­pensou a au­dição dos re­latos te­le­fó­nicos e pelo meio rural que o fez, já na fase final da sua vida, a es­ta­be­lecer-se em Ca­xias.

Entre as nu­me­rosas dis­tin­ções com que foi agra­ciado des­taca-se o tí­tulo de Doutor Ho­noris Causa em Fi­lo­sofia pela Uni­ver­si­dade Hum­boldt de Berlim a Me­dalha de Mé­rito da Se­cre­taria de Es­tado da Cul­tura.

Como es­creveu, Jorge Ca­lado, me­ló­mano bem co­nhe­cido nos meios mu­si­cais na­ci­o­nais, «João de Freitas Branco foi sem dú­vida o grande edu­cador mu­sical dos por­tu­gueses».

 



Mais artigos de: Argumentos

A meia voz

Pela televisão e não só, chegou-nos a notícia de que o Estado Palestiniano havia sido admitido na ONU com o estatuto de observador em resultado de uma esmagadora votação favorável a uma proposta nesse sentido. Mais: ficámos também a saber que Portugal havia...

A sessão

Eu, impenitente pecador, confesso que quando me dirigia para o lançamento do centenário (do nascimento) do camarada Álvaro Cunhal levava na ideia que ia assistir a uma explanação, clara, bem alinhada, de uma vida, de uma obra, de uma actividade, nalguns dos seus nós essenciais,...

O velho e o novo império jesuíta

«A burguesia e o proletariado são as classes essenciais da sociedade capitalista. A tendência básica desta sociedade é de cindir-se, cada vez mais em burguesia e proletariado. Este processo nasceu com o próprio capitalismo» (A Economia Política do Capitalismo,...